O trabalho dignifica!?

     A América do Sul está longe de ser conhecida por possuir o povo mais trabalhador do mundo, como ocorre com os Estados Unidos, Japão, Coréia do Sul e China. Talvez algumas características culturais e históricas ajudem a explicar o porquê disso e amenizar um pouco o peso do fardo dessa fama de povo “pouco trabalhador”. Essa fama dói mais em uns do que em outros e, às vezes, é objeto de orgulho para alguns. O povo sul-americano é muito heterogêneo e entender como essas pessoas pensam é um desafio.

     A dedicação ao trabalho era, e ainda é, uma das principais virtudes do ser humano para os povos agrícolas dos altiplanos andinos, especialmente no Peru e Bolívia. Já para os nativos coletores-caçadores, o trabalho tem importância secundária, geralmente destinada às mulheres. O próprio meio de vida deste nativo parece não exigir muitas horas de trabalho ao dia. Além do mais, dado o baixo conhecimento tecnológico disponível, dificilmente o produto do seu trabalho poderia ser armazenado por longos períodos, especialmente nos trópicos, onde a temperatura e a umidade tendem a apodrecer tudo rapidamente. Textos históricos relatam o espanto desses nativos frente à vontade dos conquistadores europeus, especialmente portugueses e espanhóis, em acumular bens. Como não conheciam o dinheiro, não entendiam porque tanta cobiça por metais e pedras coloridas, bem como pelo pau-brasil, madeira esta usada na Europa para tingir as roupas da época. Não entendiam o que os europeus fariam com esses tesouros que não podiam ser comidos. Também não entendiam como tão poucas pessoas tinham tantas roupas para tingir, a ponto de quase extinguirem essa espécie de árvore na extensa costa brasileira.

     A escravidão, prática marcante do período colonial, também teve uma faceta bastante interessante na forma como o sul-americano enxerga o trabalho atualmente. O nativo sul-americano, apesar de adaptado ao meio tropical, não estava adaptado ao duro trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, preferindo a morte à escravidão. O negro africano, embora mais adaptado ao longo dia de trabalho debaixo do sol, sabia que o seu destino era morrer de tanto trabalhar. Portanto, economizar esforços era a única solução para prolongar sua vida. Já a aristocracia mercantilista deste mesmo período colonial entendia que trabalho era coisa somente para escravos, de forma que esta atividade era encarada como algo vergonhoso para as “pessoas de bem”.

     Em outras fases da curiosa história de alguns países da América do Sul, a negação declarada ao trabalho passou a ser encarada como uma forma de insubmissão das classes mais pobres contra a aristocracia. Por exemplo, no Brasil do final do século XVIII, com o esgotamento do ouro antes extraído em algumas áreas concentradas do estado de Minas Gerais, as pessoas se espalharam pelo território brasileiro e passaram a praticar a agricultura de subsistência, frente à falta de outra atividade mercantilista rentável. Passaram algumas gerações cultivando a terra que pudessem ocupar. Esta não possuía dono de papel passado, mesmo porque ela não possuía valor. Com a introdução do café, na segunda metade do século XIX, a terra passou a ter valor novamente. A aristocracia percebeu a oportunidade de fazer riqueza e tomou posse da terra, pelo bem ou pelo mal, obrigando que os camponeses, antes autônomos e ocupantes da terra, agora passassem a trabalhar como empregados nas lavouras. Sentindo-se injustiçados, esses humildes camponeses se negaram ao trabalho, obviamente. Com a chegada dos dedicados imigrantes europeus (italianos, alemães e outros), especialmente no início do século XX, criou-se o estigma da baixa afinidade do povo nativo com o trabalho. Por este motivo, na América do Sul, as regiões com forte imigração européia são as que mais se identificam como regiões de “povo trabalhador”.

     Os 800 anos de colonização moura da península ibérica deixou como herança a prática da “ciesta”, que é aquela pequena sonequinha após o almoço que, às vezes, pode durar 4 horas. Essa prática é muito importante para os povos do deserto do norte da África, onde se torna insuportável trabalhar nas horas mais quentes do dia, com sol a pino. Nos países sul-americanos colonizados pelos espanhóis, especialmente na Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, onde as temperaturas não são tão altas assim, a prática da “ciesta” é fortemente enraizada na cultura da população e as ruas das pequenas e médias cidades se tornam praticamente desertas entre as 12:00 e 16:00 h.

     Talvez essas características de comportamento do seu povo frente ao trabalho ajudem a explicar a menor competitividade da América do Sul em atrair o capital internacional, quando comparada a muitos países da Ásia, como os chamados “Tigres Asiáticos” (Coréia do Sul, Malásia, Singapura). Nestes países, a disciplina para o trabalho e o compromisso com o patrão são muito mais intensos. Se você fosse um investidor interessado em fazer lucros, você investiria seu capital para construção de fábricas em locais onde o povo não é muito afeito ao trabalho?

     Verdade ou não, o fato é que o sul-americano comum, talvez o mais humilde, parece desdenhar um pouco as pessoas muito dedicadas ao trabalho e, conseqüentemente, muito afeitas às riquezas. Preferem entender que devem “trabalhar para viver” antes que “viver para trabalhar”. Talvez para um europeu ou uma pessoa nascida em uma ex-colônia de assentamento, como os Estados Unidos e Austrália, isso seja um pouco difícil de se entender. Entretanto, certamente não o é para uma pessoa criada em uma ex-colônia de exploração.


La Junta,Chile (2008).

“No ramo dos combustíveis”. Lenhador derruba as árvores, corta-a em pedaços, transporta-os em um carro de bois até a beira da estrada, onde são empilhados, e espera algum comprador para a sua lenha. Esta será usada para aquecer as casas durante o inverno.






Vilarejo de “Cabeça de Boi”, Estado de Minas Gerais, Brasil (2007). 

“No ramo do transporte de materiais para construção”. Nos confins do montanhoso Estado de Minas Gerais, onde as estradas são tortuosas e o asfalto não chega, ainda é comum se encontrar pessoas transportando seus pertences por meio de carros puxados por juntas de boi.












Ponte do Passo do Lontra, Estado do Mato Grosso do Sul, Região do Pantanal, Brasil (2008). 

“No ramo do transporte de gado”. A hostilidade do pantanal tem mantido extensas áreas de terra praticamente inabitadas, uma vez que viver nessa região, especialmente no verão, pode se tornar um martírio. O clima quente e úmido é lugar ideal para a multiplicação exagerada de mosquitos, ferozes mosquitos. Por esse e outros motivos, diz-se que o homem pantaneiro é um dos mais bravos e rústicos que existe. O Senhor Luis é um desses homens. Viúvo e pai de dois filhos, ele vive na estrada transportando centenas de cabeças de gado entre fazendas. Cada uma de suas viagens dura semanas e ele percorre centenas de quilômetros em lombo de mula, juntamente com mais 4 ou 5 companheiros. Com esse trabalho, ele mantém os filhos estudando na cidade, sob os cuidados de uma senhora contratada.



Ponte do Passo do Lontra, Estado do Mato Grosso do Sul, Região do Pantanal, Brasil (2008). 

“No ramo gastronômico”. Em uma comitiva pelas estradas pantaneiras, o cozinheiro desistiu do árduo trabalho e abandonou seu posto. Por ser o peão mais experiente, o Senhor Luis ocupou seu lugar na cozinha. Ele segue na frente de seus companheiros que trazem o gado, uma vez que o almoço deve estar pronto antes da comitiva chegar. Por isso, mantém um olho na cozinha e outro na estrada.

   

Parintins, Estado do Pará, Região Amazônica, Brasil (2006). 
“No ramo dos negócios”. Ajudado pelo filho, senhor passa o dia no porto oferecendo “batatas chips” para viajantes.       









Mara, Província de Cuzco, Peru (2007).

“No ramo agropecuário”. Senhora pastoreia um rebanho bastante diverso, formado por ovelhas, vacas, mulas e porcos. Uma vez que a agricultura é a principal atividade desenvolvida nesta região do altiplano, a pecuária, apesar de importante, apresenta papel secundário. A confecção de cercas aumentaria em muito os custos da criação. Além disso, as propriedades são pequenas, de modo que a disponibilidade de forragem não seria suficiente para alimentar os animais. Por esse motivo, estes são pastoreados de uma área a outra, sempre vigiados, evitando-se que danifiquem as lavouras.   



Cuzco, Província de Cuzco, Peru (2007).

“No ramo do transporte de alimentos”. Senhor transporta pães entre padarias, hotéis, restaurantes e lanchonetes da cidade.   
















Cuzco, Província de Cuzco, Peru (2007).

“No ramo dos negócios”. Senhora comercializa velas na porta da igreja.   





















Mercado de Chinchero, Província de Cuzco, Peru (2007).

“No ramo dos negócios”. Senhora comercializa artesanatos na feira.




Potosí, Departamento de Potosí, Bolívia (2009).

“No ramo dos transportes”. O senhor e a menina descarregam carga de capim para cobrir o teto de suas casas. Os dentes esverdeados e desgastados resultam do costume de mascar folhas de coca.








Potosí, Departamento de Potosí, Bolívia (2009).

Mercado mineiro. Neste mercado é possível comprar de tudo. Dinamite, pavio, detonador e tudo mais que um mineiro precisará para explorar as riquezas – atualmente quase esgotadas – de Cerro Rico de Potosí. Obviamente que não faltam cigarros, bebidas e, especialmente, folhas de coca.





Potosí, Departamento de Potosí, Bolívia (2009).

“Covas” de Cerro Rico. Segundo Eduardo Galeano, em seu livro “As veias abertas da América Latina”, o descobrimento das minas de Potosí, em 1545, foi a causa das mazelas enfrentadas pela Bolívia... Aqui milhares de indígenas enterraram suas vidas desde que a mina foi descoberta. Ainda nos dias hoje, os meninos começam a trabalhar antes de atingirem a maioridade e com 35-40 anos seus pulmões já estão tomados pela silicose, a primeira doença profissional surgida das Américas.


Salar de Uyuni, Uyuni, Departamento de Potosí, Bolívia (2009).

“O sal da terra”. Trabalhadores coletam o sal para venda. Como o valor do sal é muito baixo, os salários também o são. As condições de trabalho também são muito precárias. A luminosidade, que é extremamente intensa, juntamente com o sal, judiam da pele e dos olhos. Por isso, esses trabalhares usam roupas que cobrem totalmente o corpo.



Salar de Uyuni, Uyuni, Departamento de Potosí, Bolívia (2009).

“Pedalando nas nuvens”. Trabalhador retorna para casa após um dia de trabalho amontoando sal.









Corao, Província de Cuzco, Peru (2009).

Mãos à obra. Os povos andinos são exímios artesãos, principalmente quando se trata da tecelagem. Não é incomum encontrar pessoas tecendo lindos trabalhos em ambientes públicos, especialmente nas pequenas comunidades.

















Ccatcca, Província de Cuzco, Peru (2009).

Artesãs fiando. Muitos artesãos ainda fiam manualmente sua própria linha para os trabalhos de tecelagem. O fio é produzido esticando-se fiapos a partir de um velo de lã. Os fiapos são torcidos através de um fuso de madeira que é colocado em rápido movimento giratório através de brusco movimento feito com as mãos. O trabalho é mais agradável e divertido quando feito em meio à conversa com amigas. A língua local ainda é o Quechua, língua nativa do Incas.



Porto Velho, capital do estado de Rondônia, norte do Brasil (2009).

“Funilaria e pintura”. Na tentativa de dar mais alguns anos de vida ao seu inseparável meio de transporte, o senhor conserta o barco utilizado para levar passageiros em passeios pelo rio Madeira, durante os seus dias de folga no trabalho.